A greve é um direito dos servidores públicos municipais de Itaguaí. Reflexões sobre um termo de ajustamento de conduta (TAC) que não se sabe se é para valer – Por Eduardo Januário Newton (Empório do Direito)


Por Eduardo Januário Newton -
A limitação de um direito não pode(ria) decorrer da inércia estatal em cumprir o seu dever constitucional, tanto que não foi por outra razão que no momento de superação da ditadura civil-militar (1964-1985) foram previstos importantes mecanismos de controle da mora estatal: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.
A demora legislativa em regulamentar o previsto no artigo 37, inciso VII, Constituição da República[ii] e a postura inicial de timidez decisória assumida pelo Supremo Tribunal Federal, no que se refere ao mandado de injunção, representaram um duro golpe no exercício do direito à greve pelos servidores públicos.
No entanto, mesmo diante dessa realidade de vazio normativo, as lutas por melhores condições de trabalho, vencimentos e outras matérias afetas ao cotidiano do servidor público se fizeram presentes, sendo certo que o último recurso a ser utilizado nessa batalha por direitos, a greve, foi empregado, quando se mostrou necessário.
A persistência nas reinvindicações aliada à provocação do Poder Judiciário como local de resolução do conflito, uma vez que subsistia a omissão inconstitucional, instaurado entre a Administração Pública e os seus servidores fizeram com que o Supremo Tribunal Federal mudasse sua linha decisória, vide os Mandados de Injunção nº 670, 708 e 712.
O arcabouço jurídico, quanto ao exercício do direito à greve dos servidores públicos, recebeu ainda a colaboração do Decreto Federal nº 7.944/13, que internalizou a Convenção nº 151 da Organização Internacional do Trabalho.
Logo, não há qualquer margem para o estabelecimento da dúvida sobre a possibilidade, como regra geral, de os servidores públicos exercerem o seu direito à greve[iii]. Somente de maneira excepcional se mostra possível limitar esse direito, quer seja por determinação constitucional[iv], quer seja pela essencialidade do serviço prestado.
Após a apresentação do horizonte nacional, é necessário aproximar o objeto deste texto: o atual cenário da relação entre os servidores públicos municipais e o Executivo de Itaguaí.
No ano de 2014, após o regular trâmite na Câmara dos Vereadores e sanção do Chefe do Executivo, foram promulgadas leis que estabeleciam planos de cargos, carreiras e vencimentos para diversas categorias de servidores.
No citado município fluminense, que adquiriu a fama por ter sido retratado em O Alienista, conto machadiano marcado pelo personagem Simão Bacamarte que interna toda a população, o ano de 2015 foi marcado por uma excentricidade, que não foi médica, mas sim jurídica. As leis votadas, aprovadas e sancionadas vieram a ser “suspensas” por meio de ato próprio do Executivo – Decreto Municipal nº 3.941/15.
Assim como a jabuticaba é algo genuinamente nacional, depara-se com inovação brasileira: em pleno regime democrático, uma lei é suspensa pela “caneta” do Chefe do Executivo.
Aos servidores públicos municipais de Itaguaí, restou somente a busca pela implementação dos seus direitos, o que culminou com a decretação de greve por parte de várias categorias do funcionalismo público.
Em um cenário de ausência de diálogo, coube a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro intermediar negociações, que, na verdade, não se mostraram ainda frutíferas quanto à revogação de um Decreto, que não possui qualquer amparo. No entanto, no último dia 11 de Março, foi celebrado Termo de Ajustamento de Conduta entre a Defensoria Pública e o Município de Itaguaí, anexo, que indicava a possibilidade de arrefecimento dos ânimos. A partir do compromisso estatal de não realizar qualquer “corte” no ponto dos servidores que estivessem aderido ao movimento[v], demonstrado estava o reconhecimento da legalidade do recurso extremo e fortificada se mostrava a via do diálogo para a solução do impasse existente[vi].
Porém, para a surpresa de todos, no dia seguinte a celebração do TAC, por meio de decisão liminar proferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro (autos do dissídio coletivo de greve nº 0009935-40.2015.8.19.0000), a greve foi declarada ilegal ante pedido apresentado pela Procuradoria do Município de Itaguaí, que ainda pleiteava pelo corte dos vencimentos dos grevistas.
Os direitos, inclusive dos servidores públicos municipais de Itaguaí, não podem ser visualizados como dádivas concedidas pelos chamados donos do poder. Quiçá essa compreensão existente no senso comum explique, ao menos em parte, a dificuldade de se implementar a cidadania em terras brasileiras. Logo em seguida ao ato de assinar, não pode(ria), e de maneira unilateral, o Estado desprezar o que pactuou ou, como no caso tratado nesta breve comunicação, na data seguinte à celebração obter decisão judicial contrária àquilo que negociava. Há de se questionar até quando categorias tratadas com tanto afinco no cenário acadêmico, tal como a teoria dos atos próprios[vii], o venire contra factum proprium[viii] e a boa-fé objetiva, serem completamente ignorados na prática forense.
Apesar de não saber se o TAC assumido pelo Município de Itaguaí é levado a sério por aquele signatário, necessário se faz registrar a serenidade de quem acreditou na via extrajudicial como local apropriado para a solução de conflitos e, principalmente, a solidariedade àqueles que decidiram adotar uma postura ativa de cidadania. Se em outros tempos, as fontes jurídicas se encontravam na revelação divina ou na benevolência de um governante, os servidores públicos de Itaguaí demonstram que somente pela luta, que deve ser diária, contínua e ininterrupta, os direitos podem ser incorporados ao patrimônio jurídico do ser humano, de uma categoria e da própria humanidade.

[ii] “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”.
[iii] “Não é diversa a construção constitucional brasileira, a partir de 1988, elaborada num movimento de superação da ordem autoritária anterior, que reconheceu como parte do processo democrático, a garantia do direito de greve inclusive no serviço público. Trata-se, de fato, de render-se a uma conduta legítima que impõe como dever de qualquer categoria organizada levar adiante os interesses estabelecidos autonomamente pelos trabalhos que as integram. Em voto célebre no STF (Mandado de Segurança nº 90.245-DF), o Ministro Victor Nunes Leal chegou a classificar como espécie de inexigibilidade de outra conduta que torna lícita a afronta à própria lei, porque como acentuou: ‘a lei não pode exigir dos operários que sejam soldados ou heróis do patronato’”. (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Ideias para a cidadania e para a justiça. Porto Alegre: Sérgio Antono Fabris Editor, 2008. p. 98)
[iv] Art. 142, § 3º, inciso IV, Constituição da República: “ao militar são proibidas a sindicalização e a greve”
[v] Cláusula segunda, item I, alínea d: “A partir da celebração deste termo, a abstenção de corte ou suspensão de pagamento em razão de falta enquanto não se instaurar o devido processo administrativo que assegurará as garantias fundamentais da ampla defesa e do contraditório”
[vi] As demais obrigações assumidas pelo Município de Itaguaí foram as seguintes: “No prazo de 15 (quinze) dias, a contar da celebração do presente termo, a criação, nas folhas de ponto, mapa de controle de frequência ou qualquer outro mecanismo de controle de presença, do código específico de greve, uma vez que hoje não existe essa realidade no âmbito da Administração Pública Municipal, o que acarreta na utilização do código 40 – falta injustificada – para o servidor ou contratado que exerce o direito de greve; No prazo de 5 (cinco) dias, a contar da celebração do termo, a devolução, por meio de folha suplementar de pagamento, dos valores retidos nos contracheques de fevereiro dos servidores que participaram do movimento grevista e que em razão da falta de código específico, não puderam informar a sua adesão ao citado movimento; No prazo de 5 (cinco) dias, a contar do seu recebimento, o pagamento, por meio de folha suplementar, das “dobras” dos professores, que não tiveram referido benefício pago nos contracheques de fevereiro; A partir da celebração deste termo, a abstenção de qualquer medida disciplinar enquanto não se instaurar o devido processo administrativo que assegurará as garantias fundamentais da ampla defesa e do contraditório; No prazo de 15 (quinze) dias, a contar da celebração do presente termo, a apresentação de fundamentação fática e jurídica para todas as transferências, remoções, exonerações e demissões de servidores, empregados e contratados da Administração Pública Municipal de Itaguaí a partir do início da greve”.
[vii] “A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium, protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte.” (MOTA, Maurício Jorge P. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. A pós-eficácia das obrigações. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2000. p. 199.)
[viii] “À luz destas considerações, pode-se indicar quatro pressupostos para a aplicação do princípio de proibição ao comportamento contraditório: (i) um ‘factum proprium’, isto é, uma conduta inicial; (ii) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; (iii) um comportamento contraditório com este sentido objetivo (e, por isto mesmo, violador da confiança); e finalmente, (iv) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição”. (SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório. Tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 124.)


Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público no estado de São Paulo (2007-2010). Mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela UNESA. Email: newton.eduardo@gmail.com                                                                                                                                                       Fonte: http://emporiododireito.com.br/a-greve-e-um-direito-dos-servidores-publicos-municipais-de-itaguai-reflexoes-sobre-um-termo-de-ajustamento-de-conduta-tac-que-nao-se-sabe-se-e-para-valer-por-eduardo-januario-newton-2/

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